Noronha, Ricardo e Trindade, Luís (2019). "Portugal, uma retrospectiva: 1974" in Tavares, Rui (coord.) Colecção Portugal, uma retrospectiva, vol. 3, Público e Tinta-da-China.
O Portugal que se autocelebrou democrático e europeu em 1998, no nosso anterior volume, tem as suas raízes nos anos de 1974 e 1975, aqui narrados e analisados por Ricardo Noronha e Luís Trindade em toda a sua profusão de acontecimentos e de sentidos. Uma vez que fazemos, nesta coleção, uma viagem inversa à dos sujeitos históricos, é sempre crucial lembrar as condições em que estes agiam: sem saber como a história acabava. Em 1974 (e 1975) os atores sociais e políticos portugueses saberiam que se estava a encerrar um ciclo ditatorial que tinha durado mais de 40 anos, e um ciclo imperial que durara mais de 400. O destino imediato — a iniciação de um ciclo democrático — estava bem mais presente nos espíritos do que a abertura de um ciclo europeu.
Nesse hiato entre ciclos, emerge um ator coletivo múltiplo — o povo — que se empenha em preencher de sentido as palavras que constavam dos lemas revolucionários. O que está ainda em fluxo nesses anos são, afinal, os significados de democracia, de desenvolvimento e de descolonização. E, por detrás deles, o significado do próprio povo, exaurido por uma guerra colonial com que o regime do Estado Novo tentara provar que Portugal era um todo pluricontinental, e cujo desfecho demonstrará que as categorias de «Portugal» e de «portugueses» não são tão fixas e incontestadas como por vezes parecem. Acresce que, nestes anos revolucionários, tais categorias se cruzaram com outras igualmente objeto de disputa: a «classe», os «trabalhadores», a «propriedade», o «poder» e, como corolário, o «socialismo», a categoria que, entre todas, passa por uma transformação mais dramática, de horizonte histórico inescapável nos anos 70 até à sua quase invisibilidade nos nossos dias.
Se bem que em contraste menos evidente, os sentidos de «democracia», «desenvolvimento» e — por surpreendente que isso possa parecer — «descolonização» continuam a ser tão decisivos quanto fugidios nos dias de hoje. É por isso fundamental revisitar os anos de viragem em que se formou o Portugal contemporâneo, neste
estudo que alia magistralmente os fios da história social com os da história política e cultural de um país em transição.